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Musculatura de fala (I)

Musculatura corporal-2Esta nova série do blog vai tratar da musculatura de fala em seus aspectos fisiológicos e histoquímicos.

A musculatura de fala é estriada esquelética. Sobre as características gerais deste tipo de musculatura, sugiro um dos textos do blog: “Gagueira e eletroterapia (III)”. Entretanto, a musculatura de fala apresenta características que a diferenciam dos outros músculos estriados esqueléticos. Isso justifica um olhar específico para a musculatura de fala. São exatamente as diferenciações que fazem esta musculatura ser propícia para a função de fala. Vamos iniciar com a discussão sobre os dois tipos de fibras musculares. Na sequência, está prevista a discussão de três grupos musculares importantes para a fala: os músculos da mandíbula, da língua e da laringe.

 

Isoformas de miosina

Há dois tipos básicos de fibras musculares: tipo I e tipo II. Todos os músculos são compostos pelos dois tipos de fibras. O tipo de fibra que irá preponderar depende da função do músculo.

A diferenciação em fibras musculares tipo I ou tipo II depende principalmente da isoforma de miosina presente na fibra muscular. Recapitulando a sequência hierárquica [1]:

  • As fibras musculares são células compostas por miofibrilas. O número de miofibrilas varia entre centenas e milhares, dependendo do tamanho da célula.
  • Cada miofibrila é composta por cerca de 1500 filamentos de miosina e 3000 filamentos de actina. Miosina e actina são proteínas. Veja aqui uma imagem de microscopia de uma fibra muscular estriada.
  • Cada filamento proteico de miosina é composto por 200 moléculas.
  • Cada molécula de miosina, por sua vez, é composta por seis cadeias polipeptídicas:
    • Duas cadeias mais pesadas, com peso molecular de 200.000, que se entrelaçam em dupla hélice e formam a cauda e  as duas cabeças da molécula.
    • Quatro cadeias mais leves, com peso molecular de 20.000, que também ajudam a formar as cabeças da molécula.
    • Veja aqui um esquema da molécula de miosina.

A cauda forma o corpo do filamento de miosina. A parte da cauda que fica mais próxima à cabeça é chamada de braço. São os braços que auxiliam o movimento das cabeças durante a contração muscular [1].

A miosina é a parte mais importante do mecanismo de contração muscular e são as suas diferentes isoformas que permitem variabilidade funcional das fibras musculares [2]. Quando uma proteína apresenta isoformas, significa que a mesma proteína pode se apresentar de formas ligeiramente diferentes, as quais possuem funções diferentes e são geralmente codificadas por genes diferentes [2].

O método mais utilizado para classificar as fibras musculares é baseado em isoformas de miosina, especialmente em relação à cadeia pesada [2]. Por este método, sabe-se que existem fibras musculares com apenas uma isoforma de miosina (“fibras puras”) e fibras com duas isoformas (“fibras híbridas”) [3].

As isoformas de cadeia pesada de miosina encontradas em músculos esqueléticos de mamíferos são as seguintes [2]:

  1. Tipo I, com cadeia pesada de miosina Iβ: de contração lenta e que produz menor tensão isométrica.
  2. Tipo IIA, com cadeia pesada de miosina IIa: de contração e tensão intermediárias.
  3. Tipo IID ou IIX, com cadeia pesada de miosina IId ou IIx: de contração e tensão intermediárias.
  4. Tipo IIB, com cadeia pesada de miosina IIb: de contração rápida e que produz maior tensão isométrica.

Como fica aparente, existe correlação positiva entre a velocidade com que a miofibrila consegue contrair e o grau de tensão isométrica que ela consegue produzir: quanto mais rápido ocorre a contração, maior é o grau de tensão produzido.

As isoformas de cadeia pesada Iβ e IIa são as mais genéricas, enquanto as outras são específicas de alguns grupos musculares (como músculos mastigatórios, laríngeos e diafragmático) [2].

Entretanto, uma mesma fibra muscular pode não apresentar apenas uma isoforma de cadeia pesada de miosina. Existem fibras híbridas, que apresentam duas isoformas de cadeia pesada de miosina. As fibras híbridas são classificadas de acordo com a isoforma predominante (a primeira isoforma da nomenclatura predomina em relação à segunda) [2]:

  • Tipo I/IIA ou IC
  • Tipo IIA/I ou IIC
  • Tipo IIAD
  • Tipo IIDA
  • Tipo IIDB
  • Tipo IIBD

Músculos que precisam responder rapidamente têm em sua composição um número maior de fibras rápidas: como o músculo orbicular do olho [1]. Músculos que precisam responder mais lentamente têm em sua composição um maior número de fibras lentas: os músculos dos membros superiores e inferiores são compostos de metade de fibras de contração rápida e metade de contração lenta [2].

 

Tipos de fibras musculares

As fibras musculares classificadas como tipo I são de contração lenta, capazes de menor força muscular e resistentes à fadiga.

  • A contração ocorre lentamente, porque essas fibras musculares são inervadas por fibras neurais menores. A velocidade de transmissão do impulso nervoso é proporcional ao diâmetro da fibra neural: quanto maior o diâmetro, menor a resistência interna da fibra [3]. Além disso, a enzima miosina ATPase desta variante faz a quebra do ATP ocorrer lentamente [4].
  • São capazes de menor força muscular, porque as fibras são menores em tamanho, o que reduz o número de miofibrilas na fibra.
  • São resistentes à fadiga devido às mitocôndrias e à irrigação sanguínea. O número de mitocôndrias é grande, fazendo com que o metabolismo padrão seja oxidativo (ou seja, aquele que utiliza oxigênio para gerar energia). A irrigação sanguínea é ampla, fazendo com que essas fibras apresentem muitas mioglobinas. A mioglobina é uma proteína que armazena oxigênio. O átomo de ferro no núcleo da molécula de mioglobina confere ao músculo um aspecto avermelhado.

Já as fibras musculares classificadas como tipo II são de contração mais rápida, capazes de maior força muscular e menos resistentes à fadiga.

  • São de contração rápida, porque são inervadas por fibras nervosas de maior calibre. Para contraírem rapidamente, elas contêm um retículo sarcoplasmático extenso, que libera uma grande quantidade de íons de cálcio para iniciar a contração. Além disso, a enzima miosina ATPase desta variante faz a quebra do ATP ocorrer rapidamente [4].
  • São capazes de maior força muscular, porque são fibras maiores, com maior número de miofibrilas.
  • São menos resistentes à fadiga devido ao metabolismo anaeróbico. O metabolismo padrão é o glicolítico, ou seja, aquele que utiliza glicose para gerar energia. A quebra da glicose pelas enzimas glicolíticas liberam energia rapidamente. A menor irrigação sanguínea e menor quantidade de mioglobina confere ao músculo um aspecto esbranquiçado.

Veja aqui uma imagem de microscopia de um músculo esquelético de um frango de corte. Na primeira imagem, o músculo é composto por fibras musculares tipo I, que são fibras menores. Na segunda imagem, o mesmo músculo é composto basicamente por fibras musculares tipo II, fibras maiores em tamanho.

 

Unidade motora

A unidade motora é considerada a unidade funcional do movimento, sendo composta pelo neurônio motor (motoneurônio) e pelas fibras musculares que ele inerva [1, 3].

  • A unidade motora do tipo I contém fibras musculares do tipo I, sendo de contração mais lenta, mais resistente à fadiga e geradora de menor tensão isométrica. Seus axônios são de menor diâmetro e com alto limiar de ativação.
  • A unidade motora do tipo II contém fibras musculares do tipo II, sendo de contração mais rápida, menos resistente à fadiga e geradora de maior tensão isométrica. Seus axônios são de maior diâmetro e com baixo limiar de ativação.

O número de fibras musculares inervadas por um motoneurônio pode variar muito, dependendo do grau de precisão necessário para o movimento. Exemplos comparativos:

  1. Músculos da laringe: menos de 10 fibras musculares por unidade motora [1].
  2. Músculos da mão: de 200 a 300 fibras musculares por unidade motora [3].
  3. Músculos dos membros inferiores: 1.000 fibras por unidade motora [3].

Todas as fibras musculares da unidade motora são do mesmo tipo histoquímico [3, 4]. As formas híbridas citadas anteriormente são formas de transição, ou seja, se uma mesma fibra muscular apresenta mais de uma isoforma de miosina é porque está havendo a transição de uma isoforma para outra. Em algum momento, a transição irá finalizar e a fibra muscular terá uma única isoforma.

Os motoneurônios que inervam as fibras musculares esqueléticas são fibras mielinizadas de até 20μm de diâmetro, chamadas fibras Aα [3]. O diâmetro de um motoneurônio Aα varia de 1 a 20μm, enquanto o de uma fibra muscular esquelética varia de 50 a 200μm [3].

 

Força de contração muscular

Além da isoforma de miosina e do calibre do motoneurônio, outros fatores afetam a produção de força muscular.

Um desses fatores é a frequência de disparo do motoneurônio [1, 3]. Quando a frequência de disparo é baixa (por exemplo, 1 Hz), um novo potencial de ação só ocorre depois que o anterior terminou. Essas contrações musculares são chamadas de espasmódicas, porque geram um movimento interrompido. Conforme a frequência de disparo aumenta (por exemplo, 10 Hz), um novo potencial de ação pode iniciar sem que o anterior tenha terminado. Se a frequência de disparo aumentar ainda mais (por exemplo, 20 Hz), um potencial de ação ocorre imediatamente após o anterior. Essas contrações musculares são chamadas de tetânicas, porque geram um movimento contínuo e suave. Na vida diária, a taxa de disparo de potenciais de ação geralmente está entre 5 e 15 Hz, não ultrapassando 60 Hz [3]. Assim, quanto maior a frequência de disparo, maior a força muscular produzida.

Outro fator é o número de fibras musculares recrutadas [1, 3]. A contração muscular fisiológica é guiada pelo princípio do tamanho: no início da contração muscular, são ativadas unidades motoras menores (ou seja, as do tipo I, que produzem menor tensão muscular) e progressivamente são ativadas as unidades motoras maiores (ou seja, as do tipo II, que produzem maior tensão) [3].

 

Remodelamento muscular

As fibras musculares são estruturas dinâmicas, capazes de alterar seu fenótipo de acordo com diversos fatores. A transição das isoformas de cadeia pesada de miosina sempre obedece à mesma sequência: Iβ ↔ IIa ↔ IId ↔ IIb [2]. A mudança, portanto, é gradual, seguindo a hierarquia de produção de tensão isométrica.

A atividade neural é uma das condições que modifica a estrutura das fibras musculares em relação às isoformas de cadeia pesada da miosina [2]. Músculos rápidos se tornam lentos se são reinervados por um nervo lento e vice-versa. Ou seja, é a ativação neural que faz um músculo ser lento ou rápido.

O condicionamento físico também modifica a estrutura das fibras musculares [2]. Popularmente, as pessoas sabem que a musculatura fica mais “resistente” com o exercício físico. Assim, se uma pessoa começa a fazer exercícios para a musculatura de fala, aos poucos ela percebe que cansa menos para falar. Isso ocorre porque as fibras musculares tipo II são progressivamente transformadas em tipo I. Todos os músculos corporais estão em constante remodelamento para responder melhor às funções a eles requisitadas. Não apenas a isoforma de miosina é remodelada, mas também o tamanho, a força de contração e o suprimento vascular da fibra muscular.

A estimulação elétrica também pode ser utilizada para modificar as isoformas de cadeia pesada de miosina [2]. Estimulações de baixa frequência mimetizam o padrão tônico (lento), enquanto estimulações de alta frequência mimetizam o padrão fásico (rápido) [2].

Hormônios (como testosterona e os da tireoide) também afetam as isoformas de cadeia pesada de miosina. A maior concentração desses hormônios aumenta o número de fibras rápidas [2].

Ainda outro fator é o envelhecimento, que também tende a transformar fibras rápidas em lentas.

 

Consumo de energia durante a contração muscular

Em última instância, a contração muscular ocorre devido à quebra do ATP em ADP e fosfato.

Entretanto, toda a concentração de ATP na fibra muscular é suficiente para manter contração máxima por apenas 2 segundos [1]. Sendo assim, são necessários outros mecanismos que auxiliem na refosforilação do ADP em ATP a fim de sustentar a contração muscular por mais tempo.

Um desses mecanismos é pela fosfocreatinina [1]. A quebra da fosfocreatinina libera creatinina e fosfato, sendo este último unido ao ADP. Mas a concentração de fosfocreatinina na fibra muscular também não é grande: a energia da refosforilação por fosfocreatinina é suficiente para manter contração máxima por mais 6 segundos.

O outro mecanismo é o glicolítico [1]. Existem reservas de glicogênio nas fibras musculares. O glicogênio é quebrado, liberando moléculas de glicose com fosfato. O fosfato então refosforila o ADP e a fosfocreatinina. A quebra de todo o glicogênio intracelular pode sustentar contração máxima por 1 minuto.

A última fonte de energia é o metabolismo oxidativo, ou seja, a combinação do oxigênio com vários nutrientes celulares para liberar ATP [1]. Grande parte (95%) da energia necessária para a contração muscular sustentada é conseguida desta forma. Os nutrientes celulares utilizados são os carboidratos, as proteínas e os lipídeos [1]. Para períodos de contração acima de 4 horas, a energia provém principalmente de lipídeos. O músculo é um dos maiores consumidores de oxigênio do organismo, por isso conta com uma ampla rede vascular [3]. Distúrbios circulatórios podem afetar a habilidade do músculo em produzir e sustentar a contração [3].

A fadiga muscular ocorre quando o músculo não é mais capaz de sustentar a contração [1, 3]. A fadiga aumenta em proporção direta à diminuição do glicogênio na fibra muscular. Assim, músculos que fadigam rapidamente são compostos, em sua maior parte, por fibras tipo II. Por outro lado, músculos que fadigam mais lentamente são compostos por fibras tipo I. Se ocorrer interrupção do fluxo sanguíneo para o músculo, a fadiga completa ocorre em 1 minuto, que é o tempo máximo de contração muscular por metabolismo anaeróbico [1].

 

Referências

[1] Guyton, A. C. & Hall, J. E. (1996). Contraction of skeletal muscle. In: Textbook of medical physiology (pp. 73-85). 9th ed. Philadelphia: W. B. Saunders Co.

[2] Pette, D. & Staron, R. (2000). Myosin isoforms, muscle fiber type, and transitions. Microscopy Research and Technique, 50: 500-9.

[3] Robinson, A. J. (2010). Fisiologia do músculo e do nervo. In: Robinson, A. J. & Snyder-Mackler, L. Eletrofisiologia clínica: eletroterapia e teste eletrofisiológico (84-118). 3ª ed. Porto Alegre: Artmed.

[4] Rodrigues, L. A. et al. (2006). Estimulação elétrica e performance muscular. In: Cisneros, L. L. & Salgado, A. H. I. Guia de eletroterapia (pp. 69-75). Belo Horizonte: Coopmed Editora Médica.