Os geneticistas Carlos Frigerio-Domingues, Dennis Drayna & colaboradores publicaram um estudo experimental sobre os resultados da fonoterapia em adultos com e sem mutação nos genes GNPTAB, GNPTG, NAGPA ou AP4E1 [1]. Esses quatro genes já foram identificados como tendo relação com a gagueira persistente. Para saber mais, acesse este outro post do blog.
O estudo
Participaram do estudo sujeitos entre 16 e 55 anos, todos com gagueira persistente, sendo 80% do sexo masculino. Todos referiram outros familiares com gagueira. Entre os sujeitos, foram identificados 50 indivíduos que apresentavam mutação em um dos quatro genes relacionados à gagueira e outros 47 indivíduos que não portavam nenhuma mutação nesses quatro genes.
A fonoterapia foi realizada de forma intensiva, ao longo de 12 dias consecutivos. A fonoterapia adotou a abordagem de modelamento da fluência, cujo objetivo é reduzir os episódios explícitos de gagueira. Esta abordagem terapêutica é orientada para a melhora do controle neuromotor da fala.
A gagueira foi analisada imediatamente antes e depois da fonoterapia através de amostras de fala gravadas em áudio e vídeo. As amostras analisadas envolveram duas situações comunicativas: fala dirigida e leitura em voz alta. Duas fonoaudiólogas contabilizaram o percentual de palavras com gagueira de todas as amostras.
Um questionário foi aplicado para avaliar as percepções e reações de cada sujeito em relação à sua fala para diferentes situações comunicativas. Este questionário incluía itens classificados em três grandes eixos: expectativa, evitação e luta/esforço (maiores detalhes adiante).
Durante o período de coleta de dados para o estudo, as duas fonoaudiólogas e os sujeitos com gagueira não sabiam quais indivíduos portavam mutações gênicas, estando todos cegos para a condição genética dos sujeitos.
Resultados
Os sujeitos melhoraram significativamente com o programa de tratamento: antes da terapia, a média de palavras com gagueira esteve entre 11 e 16%; depois da terapia, a média esteve entre 1 e 2%. A pontuação no questionário relativo a reações dos sujeitos em diferentes situações comunicativas também decaiu significativamente (indicando melhora): de 32 para 7 pontos. Esses resultados se referem a todos os sujeitos aglutinados.
Os dois grupos de sujeitos (com e sem mutação gênica) também foram comparados separadamente em relação aos resultados do programa de tratamento. Em relação ao percentual de palavras com gagueira, os grupos com e sem mutação gênica reduziram a intensidade da gagueira em 10 e 14 pontos percentuais, respectivamente, em média. Esta diferença não foi significativa estatisticamente (p = 0,12). Ou seja, em termos de percentual de palavras com gagueira, os grupos com e sem mutação gênica alcançaram resultados estatisticamente equivalentes antes e depois da fonoterapia. Assim, o programa terapêutico teve sucesso naquilo que se propôs: a redução das ocorrências explícitas da gagueira, através da melhora do controle neuromotor da fala.
Os dois grupos de sujeitos também foram comparados em relação à pontuação no questionário de percepções e reações em diferentes situações comunicativas. Neste caso, os grupos com e sem mutação gênica apresentaram redução de 23 e 28 pontos no questionário, respectivamente, em média. Esta diferença foi significativa em termos estatísticos (p = 0,009). Ou seja, o grupo com mutação em um dos quatro genes apresentou menor modificação nas suas percepções e reações em relação à gagueira. Esta diferença não pode ser atribuída ao fato de os sujeitos que portavam alguma mutação gênica para gagueira saberem de sua condição, porque eles só tomaram conhecimento do diagnóstico genético após a coleta de dados ser finalizada. Ou seja, a menor mudança de percepções e reações nos sujeitos portadores de mutação não pode ser atribuída ao fato de eles terem ficados negativamente impactados por saberem serem portadores de mutação genética.
O que segue é por minha conta e risco: embora os autores não tenham abordado este aspecto, a pior resposta em relação às percepções e reações medidas pelo questionário pode ser interpretada de duas formas. Primeiro, maiores detalhes sobre o questionário: foi utilizado o “Perceptions of Stuttering Inventory (PSI)”, um questionário publicado em 1967 por Gerald Woolf (primeira página aqui). Este questionário classifica seus itens em três grandes eixos: expectativa, evitação e luta/esforço. Seguem dois exemplos de cada eixo:
- Os itens “Sentir que as interrupções na sua fala (por exemplo, pausas, hesitações ou repetições) vão desencadear gagueira” e “Sussurrar palavras para si mesmo antes de falá-las ou praticar o que se pretende dizer” são exemplos do eixo expectativa.
- Os itens “Evitar falar com figuras de autoridade (por exemplo, professor, empregador ou padre/pastor)” e “Evitar solicitar informações (por exemplo, perguntar direções ou perguntar sobre horários de transporte público” são exemplos do eixo evitação.
- Os itens “Fazer movimentos faciais desnecessários (por exemplo, dilatar as narinas durante as tentativas de fala)” ou “Repetir um som ou palavra com esforço físico” são exemplos do eixo luta/esforço.
Dependendo de qual eixo específico originou a diferença de resposta entre os dois grupos, seria possível ter maior clareza sobre o papel específico das mutações nos genes GNPTAB, GNPTG, NAGPA ou AP4E1 na gagueira. Por exemplo, se os sujeitos com mutações gênicas apresentaram menor melhora na pontuação relativa ao eixo luta/esforço seria uma evidência de que, embora esses mesmos sujeitos tenham apresentado melhora com o programa de tratamento, eles apresentam maiores dificuldades para transferir a aprendizagem neuromotora para situações cotidianas. Neste caso, seriam sujeitos que necessitariam de maior treino para transferir a aprendizagem neuromotora. Por outro lado, se os sujeitos com mutações gênicas apresentaram menor melhora nas pontuações relativas aos eixos expectativa e/ou evitação seria uma evidência de que eles apresentam sinais de fobia social. Como demonstrado por uma pesquisa anterior e divulgada aqui no blog, adultos com gagueira que também apresentam fobia social não possuem gagueira mais grave em relação aos que não apresentam fobia social: o que os diferencia é o fato de terem maior insatisfação com sua fluência, serem mais propensos a evitar situações de fala e referirem maior impacto da gagueira em suas vidas. Neste caso, seria uma parcela de sujeitos que necessitaria de fonoterapia para a melhora direta da gagueira e de psicoterapia para o aumento do bem-estar em relação à gagueira e às interações sociais.
* Agradeço ao Carlos Frigerio-Domingues por ter enviado o artigo do “Perceptions of Stuttering Inventory (PSI)”.
Referência
[1] Frigerio-Domingues, C. E.; Gkalitsiou, Z.; Zezinka, A.; Sainz, E.; Gutierrez, J.; Byrd, C.; Webster, R. & Drayna, D. (2019). Genetic factors and therapy outcomes in persistent developmental stuttering. Journal of Communication Disorders, 80, 11-17.