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Problemas de sono em crianças com gagueira

Já está disponível o primeiro estudo epidemiológico sobre gagueira infantil e problemas de sono. O estudo foi realizado por mim e pelo fonoaudiólogo americano Patrick Briley. Será publicado na edição de novembro/dezembro de 2019, no Journal of Comunication Disorders (veja aqui). Abaixo, detalhes sobre os achados e suas implicações.

O estudo

Os dados são americanos, provenientes da “National Health Interview Survey”, a qual é coletada anualmente pelo “National Center for Health Statistics”. Especificamente, os dados são do ano de 2012, quando havia as seguintes perguntas no questionário de pesquisa:

  1. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou gagueira?”
  2. “Nos últimos 12 meses, a criança regularmente apresentou insônia ou problemas para dormir?”
  3. “Nos últimos 12 meses, a criança regularmente apresentou sonolência excessiva durante o dia?”
  4. “Nos últimos 12 meses, a criança apresentou fadiga ou falta de energia por mais de três dias?”

Analisamos dados de 203 crianças cujos pais reportaram gagueira e de 10.005 crianças cujos pais não reportaram gagueira, com idades entre 4 e 17 anos.

As análises estatísticas foram feitas com correções para gênero, etnia e renda familiar.

 

Resultados

Considerando toda a amostra, ~20% das crianças com gagueira foram referidas pelos pais como regularmente apresentando insônia ou problemas para dormir em comparação com apenas ~5% das crianças sem gagueira. Esta diferença é estatisticamente significativa e indica que as crianças com gagueira têm quatro vezes mais chances de apresentarem insônia ou problemas para dormir em relação a crianças sem gagueira. Coerentemente, também foi encontrado maior relato de sonolência excessiva e fadiga diurnas nas crianças com gagueira. Este resultado levanta uma primeira pergunta: a maior prevalência de insônia e problemas de sono nas crianças e adolescentes com gagueira diminuiria as chances de melhora da fluência através da fonoterapia? Provavelmente sim. Embora ainda sejam necessários estudos que demonstrem que crianças e adolescentes com gagueira e problemas de sono respondem pior à fonoterapia, faz sentido cogitar que problemas de sono prejudiquem a aprendizagem neuromotora necessária à fluência da fala.

Crianças com gagueira possuem maiores chances de apresentar insônia ou problemas para dormir em relação a crianças sem gagueira.

Quando analisamos a presença de insônia ou problemas para dormir na faixa etária de 4 e 5 anos, a prevalência foi de ~15% nas crianças com gagueira contra apenas ~3% nas crianças sem gagueira (diferença significativa). Este resultado levanta uma segunda pergunta: a maior prevalência de problemas de sono já na primeira infância poderia sugerir que são os problemas de sono que ativam a propensão genética para gagueira? É uma possibilidade, sim. Cogitar isso faz sentido, porque já se sabe que a privação de sono pode “ligar” ou “desligar” genes. E aí temos uma terceira pergunta: será que as crianças que melhoram espontaneamente da gagueira são aquelas cujo distúrbio de sono foi identificado e tratado? Se forem, significa que a melhora “espontânea” que ocorre em alguns casos de gagueira não é assim tão espontânea como se geralmente supõe.

Quando analisamos a prevalência de insônia ou problemas para dormir ao longo do tempo, vimos que o percentual é menor da infância e maior na adolescência. Nas crianças com gagueira, a prevalência é de ~15% dos 4 a 10 anos, mas de ~25% dos 11 aos 17 anos. O aumento dos problemas de sono pode tanto ser consequência da mudança fisiológica no ciclo vigília-sono que ocorre na adolescência (com avanço de fase para início do sono, que faz com que os adolescentes sintam sono mais tarde), mas também pode indicar que a persistência da gagueira e a vivência continuada de situações estressantes de comunicação deflagra um transtorno de ansiedade e este, por sua vez, aumenta ainda mais a ocorrência de insônia e problemas para dormir nos adolescentes com gagueira.

Um estudo anterior do próprio Patrick Briley (ver aqui) já havia demonstrado que crianças com gagueira possuem maiores chances de apresentar convulsões/epilepsia, deficiência intelectual, distúrbios de aprendizagem, transtornos do espectro autista e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Como frisamos em nosso artigo, todos esses distúrbios de neurodesenvolvimento são acompanhados de alterações no sono. Por isso, dividimos as crianças com gagueira em dois grupos: aquelas com outro distúrbio de neurodesenvolvimento e aquelas sem nenhum outro distúrbio de neurodesenvolvimento associado. Como era esperado, metade das 203 crianças apresentava outro distúrbio de neurodesenvolvimento associado (n = 101) e a outra metade não (n = 102). Também como era esperado, a prevalência de insônia e problemas para dormir foi maior no grupo com outro distúrbio associado (~25%) do que no grupo sem outro distúrbio de neurodesenvolvimento associado (~10%).

Por fim, comparamos o grupo de crianças com gagueira e sem outros distúrbios de neurodesenvolvimento (n = 102) com o grupo de crianças sem gagueira e sem outros distúrbios de neurodesenvolvimento (n = 8.450). Ainda assim, encontramos que a prevalência de insônia e problemas para dormir foi maior nas crianças com gagueira (~10%) em comparação às sem gagueira (~3%). Ou seja, os problemas de sono nas crianças com gagueira não decorrem exclusivamente da presença de outros distúrbios de neurodesenvolvimento: eles estão presentes mesmo quando a criança apresenta apenas gagueira. Este achado nos fez especular se gagueira e insônia podem ser consequências das mesmas alterações neurológicas. Uma possibilidade é através dos núcleos da base, os quais estão envolvidos na gagueira e também participam da regulação do ciclo vigília-sono. Outra possibilidade é através do neurotransmissor dopamina, encontrado em altas concentrações no cérebro de pessoas com gagueira e que é associado ao estado de vigília.

Enfim, nosso estudo epidemiológico demonstra haver uma relação significativa entre gagueira infantil e problemas de sono (particularmente insônia). Novos estudos são necessários para sabermos se a identificação e o tratamento dos distúrbios de sono têm o potencial de minimizar a gagueira e de contribuir para a melhor evolução na fonoterapia.

 

Referência

Merlo, S. & Briley, P. M. (2019). Sleep problems in children who stutter: Evidence from population data. Journal of Communication Disorders, 82.