Risco de problemas de sono em crianças com gagueira

mar 04, 2024 | por Sandra Merlo | Gagueira, Sono, Últimas descobertas

Acaba de ser publicado nosso artigo sobre risco de problemas de sono em crianças com gagueira [1]. A publicação internacional é fruto do trabalho conjunto entre pesquisadores da Universidade Estadual Paulista, Instituto Brasileiro de Fluência e East Carolina University.

O estudo

Fizeram parte do estudo 50 crianças com gagueira e 50 crianças sem gagueira, pareadas por sexo e idade. Todas as crianças eram brasileiras e estavam em idade escolar (entre 6 e 12 anos). As crianças não apresentavam problemas de saúde que sabidamente aumentam as chances de distúrbios do sono (como alergias, epilepsia, TDAH, TEA, deficiência intelectual e distúrbios de aprendizagem) de acordo com o relato dos pais. As crianças também não faziam uso de nenhuma medicação de forma contínua.

As crianças com gagueira apresentavam distúrbio de fluência há cerca de cinco anos, em média. Nenhuma criança estava em fonoterapia no momento da coleta de dados, embora 14 delas já tivessem feito fonoterapia anteriormente. Todas as crianças com gagueira foram avaliadas por fonoaudiólogas, as quais confirmaram o distúrbio de fluência através da análise de gravações da fala. Em média, as crianças apresentaram cerca de 10% de sílabas com gagueira durante a conversação (com variação de 3% a 42%). A grande maioria das crianças (45 de 50) apresentava concomitantes físicos durante os momentos de gagueira.

Os pais responderam a um questionário padronizado e validado com 26 perguntas que avalia o risco de distúrbios de sono nos últimos seis meses. O questionário é dividido em seis subgrupos de problemas de sono:

  1. Problemas para início e manutenção do sono (ou seja, insônia)
  2. Problemas de respiração durante o sono
  3. Problemas de despertar
  4. Problemas na transição vigília-sono
  5. Problemas de sonolência excessiva
  6. Problemas de sudorese excessiva durante o sono
Resultados

As pontuações no questionário de sono sugeriram que 21 crianças com gagueira (42% da amostra) estavam em risco para distúrbios de sono contra apenas 2 crianças do grupo controle (4%), uma diferença estatisticamente significativa.

A análise dos subgrupos de problemas de sono sugeriu que as crianças com gagueira apresentavam maior risco para:

  • Problemas para início e manutenção do sono (insônia). Este resultado corrobora achados de nossos estudos epidemiológicos anteriores [2, 3]. A maior parte das crianças com gagueira (60%) não dormiu de 9 a 11h por noite nos últimos seis meses, que é a quantidade de sono considerada saudável para a saúde física e mental desta faixa etária (contra 32% no grupo controle). Boa parte das crianças com gagueira (42%) resistiu para ir dormir (contra 16% no grupo controle). Boa parte das crianças com gagueira (26%) também apresentou mais dificuldades para pegar no sono (contra 8% do grupo controle).
  • Problemas na transição vigília-sono. A maior parte das crianças com gagueira (66%) apresentou sono agitado: mexeu muito as pernas, mudou de posição na cama ou chutou as cobertas para fora da cama (contra 48% no grupo controle). Boa parte das crianças com gagueira também falou enquanto dormia (32%) e rangeu os dentes (28%) (contra 8% e 12% das crianças do grupo controle, respectivamente).
  • Problemas de sonolência excessiva. Boa parte das crianças com gagueira (40%) apresentou dificuldade para acordar pela manhã (contra 10% no grupo controle). Além disso, parte das crianças com gagueira (24%) acordou cansada (contra 2% no grupo controle).

Em uma análise estatística adicional, excluímos as 14 crianças com gagueira que já haviam realizado fonoterapia anteriormente na UNESP. Uma possibilidade é que os pais destas crianças pudessem ser mais sensíveis e observadores em relação às dificuldades de sono de seus filhos por já terem participado de um processo terapêutico (mesmo sabendo que este processo terapêutico não havia incluído orientações sobre higiene do sono). Nesta subamostra, 16 das 36 crianças com gagueira apresentaram pontuação sugestiva de distúrbios de sono (44%) contra apenas 2 das 50 crianças do grupo controle (4%), novamente uma diferença significativa. Este resultado nos levou à conclusão de que fazer fonoterapia não faz com que os pais se tornem mais vigilantes em relação ao sono de seus filhos com gagueira. Ou seja, é improvável que os resultados obtidos sejam decorrência da hipervigilância dos pais das crianças com gagueira e indiquem uma diferença real entre os grupos com e sem gagueira.

Conclusões

Os resultados deste estudo indicam que as crianças com gagueira possuem cerca de dez vezes mais chances de apresentar distúrbios de sono em relação aos pares sem gagueira. O risco aumentado não parece ser consequência de outros problemas de saúde. Nossa hipótese é que há uma base neurofisiológica compartilhada entre gagueira e distúrbios de sono, ou seja, as mesmas alterações neurofisiológicas que fazem com que a criança tenha predisposição para gagueira, fazem com que ela tenha predisposição para distúrbios do sono (particularmente, via núcleos da base).

Este estudo foi o primeiro a sugerir quais são exatamente os distúrbios de sono a que as crianças com gagueira estão mais suscetíveis: insônia, distúrbios da transição vigília-sono (sono agitado, sonilóquios e bruxismo, em especial) e sonolência excessiva diurna.

Tendo em vista que as crianças com gagueira possuem maior risco para distúrbios do sono, elas provavelmente também possuem maior risco para enfrentarem dificuldades com aprendizagem motora (o que interfere no sucesso da fonoterapia), cognição e aprendizagem intelectual, regulação emocional e saúde mental. Por isso, os fonoaudiólogos devem triar e identificar as crianças com gagueira que estão em risco para distúrbios de sono e encaminhá-las para tratamento adequado.

 

Referências

[1] Couto, M. C. H. D., Canhetti de Oliveira, C. M., Merlo, S., Briley, P. M., & Pinato L. (2024). Risk of sleep problems in a clinical sample of children who stutter. Journal of Fluency Disorders, 79, 106036.

[2] Merlo, S., & Briley, P. M. (2019). Sleep problems in children who stutter: Evidence from population data. Journal of Communication Disorders, 82, 1–11.

[3] Briley, P. M., & Merlo, S. (2020). Presence of allergies and their impact on sleep in children who stutter. Perspectives of the ASHA Special Interest Groups, 5(6), 1454–1466.