Um aspecto marcante na gagueira é que, em muitos momentos, o falante consegue saber que uma determinada palavra será gaguejada antes mesmo de falar aquela palavra. Isso geralmente é interpretado pelos pacientes da seguinte forma: “porque eu pensei que iria gaguejar, eu gaguejei”. Então o que alguns pacientes tentam fazer é não pensar na gagueira, tentam “não lembrar que ela existe”. Seria o ato de pensar na gagueira que leva à gagueira? Seria o “pensamento negativo” em relação à fala que “cria” a gagueira?
A fonoaudióloga belga Sarah Vanhoutte defendeu, em 2015, uma tese de doutorado sobre aspectos neurofisiológicos da gagueira (“Neurophysiological aspects of speech perception and production in stuttering”, Ghent University). Vamos discutir a seguir os achados publicados em um artigo científico [1], que ajudam a compreender este aspecto de saber que se vai gaguejar antes de falar.
A pesquisa investigou se o planejamento motor da fala é diferente para palavras faladas com fluência em relação a palavras faladas com gagueira. O planejamento motor da fala se refere à programação cerebral dos comandos motores que vão resultar na fala propriamente dita. As regiões cerebrais mais importantes para o planejamento motor da fala são o córtex pré-motor ventral, o giro frontal inferior, os núcleos da base e o tálamo. Essas regiões operam em conjunto na chamada alça córtico-estriado-tálamo-cortical.
O planejamento motor pode ser avaliado por medidas eletrofisiológicas, particularmente através de um potencial evocado chamado de “variação negativa contingente” (CNV na sigla em inglês: “contingent negative variation”). A variação negativa contingente é um potencial lento e negativo, que ocorre entre dois estímulos sucessivos. O primeiro estímulo serve como um aviso de que o segundo estímulo vai ocorrer. Após a ocorrência do segundo estímulo, o sujeito deve emitir uma resposta motora. A variação negativa contingente ocorre imediatamente antes do segundo estímulo e sabe-se que está relacionada com a atividade neural da alça córtico-estriado-tálamo-cortical.
O estudo
Três grupos de sujeitos participaram do estudo:
- Sete adultos com gagueira, quatro homens e três mulheres, entre 19 e 57 anos, sendo cinco destros e um canhoto. Todos esses sujeitos apresentaram gagueira no nível da palavra isolada.
- Vinte e cinco adultos com gagueira, 19 homens e seis mulheres, entre 18 e 57 anos, sendo 21 destros e quatro canhotos. Todos esses sujeitos eram fluentes ao nível da palavra isolada.
- Trinta e cinco adultos sem gagueira, 24 homens e onze mulheres, entre 18 e 58 anos, sendo 32 destros e três canhotos.
Os sujeitos realizaram uma tarefa de nomeação de figuras. Ao todo, havia 110 figuras para serem nomeadas. Todos os nomes iniciavam com fones bilabiais ([m, w, b, p]) ou labiodentais ([f, v]). Foi utilizada eletromiografia de superfície, com eletrodos posicionados nos lábios dos sujeitos, para detectar com precisão o início dos movimentos de fala.
Para avaliação da variação negativa contingente, a figura era o primeiro estímulo. O segundo estímulo consistia em uma linha preta na tela do computador, que sinalizava ao sujeito que ele deveria dizer o nome daquela figura. Os dados de eletroencefalografia (EEG) foram coletados com o uso de touca com 21 eletrodos, posicionada no couro cabeludo de acordo com o sistema internacional. Veja aqui um esquema gráfico dos procedimentos do estudo.
Os resultados indicaram a ocorrência da variação negativa contingente na produção de palavras com e sem gagueira: houve um potencial negativo intenso precedendo o segundo estímulo. A intensidade da variação negativa contingente foi estatisticamente menor antes de palavras gaguejadas em comparação a palavras fluentes. Além disso, a diminuição no potencial foi mais pronunciada no hemisfério esquerdo (mais relacionado à fala) do que no direito. Esses resultados sugeriram que o planejamento motor da fala é significativamente menor antes de uma palavra com gagueira em comparação a uma palavra fluente.
De forma complementar, os resultados indicaram que a variação negativa contingente é maior antes de palavras fluentes produzidas por pessoas com gagueira, principalmente no hemisfério direito. Isso indica que o planejamento motor da fala é mais intenso para palavras fluentes. A interpretação dos autores é que o aumento no potencial antes da produção de palavras fluentes sinaliza uma estratégia compensatória de processamento neural por parte das pessoas com gagueira. Ou seja, uma maior ativação cortical e subcortical durante o planejamento motor propicia a fala fluente. Além disso, houve correlação positiva entre a gravidade da gagueira do sujeito e a intensidade da variação negativa contingente antes de palavras fluentes: ou seja, quanto mais grave a gagueira, maior deveria ser o planejamento motor para que a palavra fosse falada com fluência. Veja aqui um gráfico com os resultados.
Os autores interpretaram que a redução da variação negativa contingente diante de palavras gaguejadas sinaliza um fator causal da gagueira, enquanto o aumento da variação negativa contingente diante de palavras fluentes é um fator compensatório que propicia a fluência.
Retomando o exemplo inicial deste texto: a redução na atividade da alça córtico-estriado-tálamo-cortical (medida pelo potencial de variação negativa contingente) pode explicar por que a pessoa com gagueira consegue perceber que a próxima palavra será gaguejada, antes mesmo de falar a palavra. A redução na atividade neural cortical e subcortical gera um planejamento motor insuficiente para se falar aquela palavra de forma fluente. Como a geração desse potencial envolve o córtex cerebral, a pessoa consegue ter consciência do déficit de planejamento (porque, para um fato ser consciente, ele precisa envolver atividade do córtex cerebral). Assim, não é porque a pessoa “lembrou” da gagueira, que irá gaguejar. Não é o pensamento consciente que gera a gagueira. O que o estudo demonstra é que a pessoa se torna consciente de que o planejamento motor da próxima palavra é insuficiente para a fala fluente.
Referência
Vanhoutte, S.; Cosyns, M.; van Mierlo, P.; Batens, K.; Corthals, P.; De Letter, M.; Van Borsel, J. & Santens, P. (2016). When will a stuttering moment occur? The determining role of speech motor preparation. Neuropsychologia, 86, 93-102.