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Sono e fala

Ficar acordado por 24 horas consecutivas provoca alterações em diversos parâmetros acústicos da fala.

Escrevo agora um texto adicional à série “Gagueira e sono”. Recentemente encontrei um artigo sobre mudanças que ocorrem na fala de pessoas que passam muito tempo sem dormir.

O fonoaudiólogo Adam Vogel e colaboradores publicaram um artigo sobre o tema (versão condensada do artigo aqui). Participaram do estudo 18 adultos (11 homens e 7 mulheres), entre 18 e 28 anos, os quais ficaram 24 horas acordados de forma ininterrupta. Nenhum dos sujeitos era fumante, bebedor pesado de café, usuário de drogas lícitas ou ilícitas, apresentava trauma cranioencefálico ou problemas vocais.

Foram feitas numerosas gravações de fala, as quais iniciaram às 8h de um dia e terminaram às 8h do outro dia. Os horários das gravações foram os seguintes: 8h, 12h, 16h, 20h, 24h, 2h, 4h, 6h, 8h.

Em cada gravação, foram colhidas as seguintes amostras de fala:

  • Vogal sustentada [a]
  • Fala automática (números de 1 a 20 e dias da semana)
  • Leitura de texto foneticamente balanceado
  • Monólogo espontâneo

Os sujeitos foram monitorados durante todo o período de 24 horas do experimento a fim de se garantir que não dormissem. Os sujeitos permaneceram o tempo todo em uma mesma sala. Não fizeram exercícios físicos e nem ingeriram bebidas com cafeína durante este período. A alimentação também foi controlada. Os sujeitos podiam executar apenas atividades sedentárias (conversar com amigos, jogar jogos de tabuleiro, ver televisão).

Os resultados mais importantes do experimento são listados a seguir. Importante lembrar que os resultados decorrem não apenas da pressão para dormir, mas também do ciclo circadiano. A pressão para dormir é decorrente da fadiga e aumenta continuamente com o tempo de permanência acordado. O ciclo circadiano, por sua vez, é um ciclo corporal endógeno controlado pelo cérebro (núcleo supraquiasmático), que regula períodos de maior e menor atividade corporal, correspondendo razoavelmente com o ciclo noite-dia.

 

Frequência fundamental da voz

A frequência fundamental (f0) não se modificou nas primeiras 16 horas de experimento (das 8 às 24h; Figura 1). Entretanto, das 2 às 8h da manhã do dia seguinte (de 18 a 24 horas de experimento), a f0 aumentou e apresentou grande variação em todas as tarefas. O aumento da f0 sugere aumento da tensão muscular laríngea e o aumento da variação da f0 sugere maior instabilidade no controle muscular laríngeo.

 

Formantes da fala

Os formantes da fala foram medidos na tarefa de vogal sustentada. Os três primeiros formantes (F1, F2 e F3) mantiveram-se estáveis durante as 24 horas de experimento. F1 está relacionado à posição da língua em sentido vertical, F2 à posição da língua em sentido ântero-posterior e F3 às constrições no trato vocal. Assim, a fadiga por ficar acordado por um dia inteiro não chegou a alterar a posição dos articuladores ativos e, portanto, a precisão da fala.

Entretanto, houve variação significativa no quarto formante (F4), o qual diminui a partir de 12 horas de experimento (das 20h do primeiro dia até às 8h do dia seguinte; Figura 2). F4 é o chamado “formante do falante”, relacionado à qualidade vocal. A qualidade vocal não diz respeito apenas à voz, mas à produção da fala em todo o trato. A qualidade vocal, portanto, piorou com o aumento da fadiga.

 

Tempo de fala

Foram analisadas diversas medidas temporais: tempo total de fala, tempo total de fala sem pausas, duração e variação de pausas e taxa de elocução.

A taxa de elocução apresentou comportamentos diferentes de acordo com a tarefa de fala.

Nas tarefas de fala automática, a taxa de elocução aumentou com o tempo de permanência acordado, ou seja, os sujeitos falavam os números de 1 a 20 e os dias da semana cada vez mais rapidamente conforme o cansaço aumentava. A taxa de elocução aumentou devido à diminuição da duração das pausas silenciosas.

Na tarefa de leitura, por outro lado, a taxa de elocução diminuiu com o tempo de permanência acordado (Figura 3). A diminuição passa a ser significativa a partir das 24h, isto é, a partir de 16 horas acordado. A taxa de elocução diminui tanto pelo aumento da duração fônica, quanto pelo aumento da duração das pausas silenciosas. Além da fadiga, a influência do ciclo circadiano é clara: a diminuição da taxa de elocução é progressiva das 24 às 6h (de 16 a 22 horas acordado), mas aumenta às 8h do dia seguinte (24 horas acordado), porém ainda menor do que a taxa de elocução das 8h do dia anterior.

 

Intensidade vocal e energia espectral

A intensidade vocal se manteve em torno de 58 dB durante as 24 horas de experimento. Ou seja, não houve mudança no suporte respiratório para a fala.

Os resultados referentes à energia espectral, por outro lado, foram diferentes. A energia espectral foi calculada como a intensidade sonora abaixo e acima de 1000 Hz. Em situações de fala com intensidade sonora habitual, a intensidade é maior em baixas frequências e menor em altas frequências. A energia espectral aumentou consistentemente ao longo das 24 horas de experimento na tarefa de fala espontânea (Figura 4). Como a intensidade sonora geral não variou, este resultado deve-se à mudança no padrão de adução glótica, que foi maior com o aumento da fadiga. A maior adução glótica aumenta a probabilidade de agressão e lesão tecidual na laringe.

O artigo, portanto, indica que ocorrem muitas mudanças acústicas na fala devido à vigília sustentada. Essas mudanças decorrem da fadiga, a qual modifica os padrões de contração muscular e os comandos neurológicos para a fala. É muito provável que essas mudanças piorem a fluência de pessoas com gagueira.

Todas as mudanças relatadas ocorreram em apenas 24 horas de fadiga. Se um período tão curto de fadiga provoca tantas mudanças na fala, quais seriam então as alterações de fala provocadas por períodos muito mais prolongados e consistentes de fadiga? Afinal, existem pessoas que apresentam déficit de sono há anos, às vezes décadas.