Sono, respiração e linguagem

maio 13, 2019 | por Sandra Merlo | Sono

Os distúrbios respiratórios do sono afetam o desenvolvimento da linguagem infantil, prejudicando a compreensão da fala e a aquisição do vocabulário.

A pediatra Leila Kheirandish-Gozal coordenou um estudo populacional sobre o impacto dos distúrbios respiratórios do sono no desenvolvimento neurológico de crianças entre 5 e 7 anos.

 

O que são distúrbios respiratórios do sono?

São distúrbios de respiração causados pelo aumento da resistência à passagem do ar nas vias aéreas superiores (VAS) e pela redução da ventilação pulmonar durante o sono [1]. As VAS incluem o nariz, os seios da face, a faringe e a laringe. O aumento da resistência à passagem do ar nas VAS e a redução da ventilação pulmonar estão associados com a diminuição do oxigênio no sangue arterial e com o aumento dos despertares noturnos, fazendo com que o sono deixe de ser restaurador [1]. Os distúrbios respiratórios do sono são reconhecidos como um problema de saúde frequente na infância, tendo seu pico entre 2 e 8 anos [1].

Cerca de 10% das crianças apresentam ronco frequente durante o sono [2]. O ronco é resultado do aumento de resistência para a passagem do ar nas VAS, sendo o sintoma mais comum da apneia obstrutiva do sono [2]. Uma das causas mais frequentes dos distúrbios respiratórios do sono é a hipertrofia da adenoide e/ou das amígdalas [2], que podem obstruir a passagem do ar na nasofaringe ou na orofaringe, respectivamente. Outra causa comum é a rinite, que pode hipertrofiar os cornetos, obstruindo a passagem do ar já na cavidade nasal. Ainda outra causa é flacidez dos músculos da língua e da faringe, que pode ocasionar obstrução na orofaringe quando a criança está deitada.

Existem diversas consequências cognitivas, comportamentais e escolares por não se ter um sono restaurador na infância em razão dos distúrbios respiratórios do sono [1, 2, 3], como será mostrado a seguir.

 

O estudo

Participaram do estudo 1.010 crianças entre 5 e 7 anos, de ambos os sexos.

Os pais responderam a um questionário sobre os hábitos de sono das crianças. O questionário indagava se a criança apresentava dificuldades de respiração durante o sono, respiração pela boca durante o sono, se os pais haviam presenciado apneia, se a criança apresentava sonolência diurna e se a criança roncava. O ronco foi classificado como:

  • Nenhuma vez por semana = nunca;
  • Uma vez por semana = raro;
  • Duas vezes por semana = ocasional;
  • Três vezes por semana = frequente;
  • Quatro a seis vezes por semana = quase sempre;
  • Todos os dias na semana = sempre.

As crianças classificadas como não roncadoras foram aquelas que os pais referiram ronco em até duas noites na semana. Crianças que foram referidas como roncando de três a sete vezes na semana, foram classificadas como roncadoras.

As crianças foram submetidas à polissonografia de noite inteira, com a medição dos parâmetros habituais: oito canais de eletroencefalografia, oculografia bilateral, ecocardiografia, medida de fluxo aéreo oronasal, oximetria de pulso, pletismografia torácica e abdominal. Um dos dados obtidos na polissonografia é o índice de apneia-hipopneia (IAH), que se refere ao número de eventos respiratórios obstrutivos que ocorrem por hora de sono. Em crianças, é considerado normal IAH até 1, ou seja, no máximo um evento respiratório obstrutivo por hora de sono.

Levando em consideração o questionário respondido pelos pais e os resultados da polissonografia, as crianças foram divididas em quatro grupos:

1) Grupo 1: não roncadores e com IAH < 1 por hora de sono;

2) Grupo 2: roncadores habituais com IAH < 1 por hora de sono;

3) Grupo 3: roncadores habituais com 1 < IAH < 5 por hora de sono;

4) Grupo 4: roncadores habituais com IAH > 5 por hora de sono.

As crianças também foram submetidas à avaliação cognitiva na manhã seguinte à polissonografia. Esta avaliação incluiu testes neuropsicológicos como o “Differential Ability Scales” (DAS) e o “Developmental Neuropsychological Assessment” (NEPSY).

Os dados analisados foram coletados ao longo de nove anos (de 2006 a 2014), em um esforço conjunto da Universidade de Chicago e da Universidade de Louisville, ambas nos EUA.

 

Resultados em relação ao sono

 

Grupo 1: não roncadores e com IAH < 1 por hora de sono

A média do IAH para este grupo foi de 0,4 eventos por hora.

O menor ponto de saturação de oxigênio arterial foi de 94% (média).

O índice médio de despertares foi de 8,6 por hora.

 

Grupo 2: roncadores habituais com IAH < 1 por hora de sono

A média do IAH para este grupo foi de 0,4 eventos por hora.

O menor ponto de saturação de oxigênio arterial foi de 93% (média).

O índice médio de despertares foi de 9,1 por hora.

 

Grupo 3: roncadores habituais com 1 < IAH < 5 por hora de sono

A média do IAH para este grupo foi de 2,1 eventos por hora.

O menor ponto de saturação de oxigênio arterial foi de 90% (média).

O índice médio de despertares foi de 10,8 por hora.

 

Grupo 4: roncadores habituais com IAH > 5 por hora de sono

Neste grupo, estavam as crianças com maior índice de massa corporal de toda a amostra.

A média do IAH para este grupo foi de 14,9 eventos por hora.

O menor ponto de saturação de oxigênio arterial foi de 83% (média).

O índice médio de despertares foi de 17,5 por hora.

 

Em relação ao IAH, ao menor ponto de saturação de oxigênio e ao índice de despertares, os Grupos 1 e 2 não apresentaram diferenças significativas. Mas os Grupos 3 e 4 sim.

As seguintes variáveis não diferenciaram os grupos: tempo total de sono, eficiência de sono, arquitetura do sono (percentual de sono N1, N2, N3 ou REM), latência para sono REM ou asma.

 

Resultado em relação ao desempenho de linguagem e cognitivo

As crianças do Grupo 4 apresentaram desempenho significativamente pior nas seguintes áreas:

  • Linguagem, que incluiu testes de compreensão verbal, vocabulário, definição de palavras e similaridades entre verbos (avaliado pelo DAS).
  • Compreensão de instruções verbais (prova de Compreensão do NEPSY).
  • Conhecimento não verbal, que incluiu testes de similaridades entre figuras, construção de padrões e raciocínio sequencial e quantitativo (avaliado pelo DAS).
  • Atenção e funções executivas (prova da Torre do NEPSY).
  • Processamento visuoespacial (provas de Cópia e das Setas do NEPSY).

Análises estatísticas adicionais indicaram que o IAH é um bom preditor do desempenho cognitivo.

Embora o estudo tenha demonstrado que as crianças com IAH mais alto sejam as mais suscetíveis, não quer dizer que as crianças com alterações mais brandas também não sofram consequências cognitivas dos distúrbios respiratórios do sono. Um estudo anterior feito pelo mesmo grupo [2] analisou 87 crianças entre 5 e 7 anos que apresentavam apenas ronco primário, ou seja, presença apenas de ronco, com outras variáveis polissonográficas dentro da normalidade (isto é, IAH < 5 por hora, ponto mínimo de saturação de oxigênio > 90% e índice de despertares < 20 por hora). O grupo controle foi composto por 31 crianças pareadas por sexo, idade e etnia. Os resultados indicaram que as crianças com ronco primário apresentavam redução significativa do sono REM (23% contra 27% para os controles, em média). Além disso, havia maior probabilidade de que os pais referissem que elas apresentavam desatenção, hiperatividade, timidez, ansiedade, depressão e dificuldades de socialização. Em relação à linguagem, as crianças com ronco primário apresentaram pior desempenho em testes de compreensão verbal, vocabulário e processamento fonológico (“sons da fala”).

Outro estudo do mesmo grupo [3] já havia demonstrado que adolescentes de 13-14 anos que fazem parte dos 25% da classe com pior desempenho escolar apresentam cerca de três vezes mais chances de terem tido ronco ou de terem sido submetidos à retirada de adenoide e/ou amígdalas na primeira infância (ou seja, antes dos 6 anos) em relação a seus pares que estão nos 25% da classe com melhor desempenho.

Portanto, tanto este estudo populacional [1], quanto estudos anteriores [2,3] com crianças em idade escolar indicam uma clara relação entre distúrbios respiratórios do sono e desempenho cognitivo, inclusive de linguagem oral. Quanto mais intenso for o distúrbio respiratório do sono, mais intensas serão as dificuldades cognitivas [1]. Em relação à linguagem, os testes neuropsicológicos indicaram dificuldades com compreensão de instruções faladas, com a capacidade para definir palavras e verbos e com a produção de vocabulário. Os testes neuropsicológicos também indicaram comprometimento da atenção, do raciocínio sequencial, da percepção da similaridades entre figuras e com a relação entre visão e espaço (como quando se faz cópia). Dito de outra forma: os distúrbios respiratórios do sono reduzem a inteligência da criança. Os efeitos cognitivos dos distúrbios respiratórios do sono possivelmente decorrem das reduções repetidas na oxigenação cerebral, que interferem com a consolidação de aprendizagens verbais e não-verbais.

Os autores do estudo concluíram que é necessário diagnóstico precoce para que os distúrbios respiratórios do sono não afetem o desenvolvimento neurológico e cognitivo das crianças. Além disso, fazem um alerta em relação à falta de diagnóstico e de tratamento dos distúrbios respiratórios do sono pelos pediatras [1] (americanos, no caso, mas possivelmente não muito diferente da realidade brasileira). Também fazem um alerta de que nem sempre a retirada cirúrgica de adenoide e/ou amígdalas é suficiente para normalizar o desenvolvimento cognitivo e de linguagem [3].

 

Referências

[1] Hunter, S. J.; Gozal, D.; Smith, D. L.; Philby, M. F.; Kaylegian, J. & Kheirandish-Gozal, L. (2016). Effect of sleep-disordered breathing severity on cognitive performance measures in a large community cohort of young school-aged children. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, 194, 739-747.

[2] O’Brien, L. M.; Mervis, C. B.; Holbrook, C. R.; Bruner, J. L.; Klaus, C. J.; Rutherford J.; Raffield, T. J. & Gozal, D. (2004). Neurobehavioral implications of habitual snoring in children. Pediatrics, 114, 44-49.

[3] Gozal, D. & Pope D. W. Jr. (2001). Snoring during early childhood and academic performance at ages thirteen to fourteen years. Pediatrics, 107, 1394-1399.