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Viver com gagueira persistente

A gagueira, em sua essência, é um distúrbio de comunicação. Mas, conforme persiste, gera consequências em diversas esferas da vida.

Quando a gagueira se torna persistente, ela geralmente não é mais “só” um distúrbio de comunicação, tendo potencial para afetar a qualidade de vida como um todo. Muitos aspectos influenciam este processo: a gravidade observável da gagueira, as reações à gagueira, os ambientes em que a pessoa está inserida (familiar, social, profissional), o suporte terapêutico encontrado.

As pesquisadoras Amy Connery, Arlene McCurtin e Katie Robinson procuraram sintetizar como é a experiência de se viver com gagueira persistente [1]. Além disso, discutiram como este conhecimento pode auxiliar o fonoaudiólogo no raciocínio clínico e na tomada de decisão em relação ao tratamento da gagueira.

O estudo

Foram analisados 17 estudos qualitativos envolvendo pessoas com gagueira acima de 18 anos, publicados em bases científicas de dados entre 2000 e 2018. Ao todo, foram analisadas as experiências de 232 adultos com gagueira, entre 18 e 90 anos de idade. Cinco áreas temáticas principais emergiram da análise: evitação, trabalho, identidade, reações à gagueira e relacionamentos.

1) A evitação é usada para lidar com a gagueira

A evitação foi a temática mais frequente na vivência com a gagueira. A evitação ocorre devido ao desconforto com a fala e pode se manifestar de diversas formas: evitações de palavras, de ligações telefônicas, de situações sociais e, inclusive, de interações com profissionais de saúde. O medo e a ansiedade são emoções fortemente atreladas à evitação. Um aspecto interessante é que os adultos com gagueira geralmente têm consciência de que a evitação é uma forma insatisfatória de se lidar com a gagueira e gostariam de poder fazer diferente.

2) A gagueira interfere na vida profissional

O impacto da gagueira na vida profissional pode ocorrer de diversas formas. A primeira é através da interferência na escolha da profissão a ser seguida, o que aumenta as chances de haver insatisfação posterior com o trabalho. A segunda forma é por reduzir as chances de se conseguir um emprego devido às expectativas do empregador em relação à normalidade comunicativa. A terceira forma é por interferir no relacionamento com colegas e superiores hierárquicos. A quarta forma é por interferir no progresso na carreira: muitos adultos com gagueira evitam assumir um cargo mais alto, tendo em vista que isso geralmente exige maior uso da comunicação. Por outro lado, também existem adultos que não relatam impactos negativos da gagueira no mercado de trabalho.

3) A gagueira afeta a identidade

O impacto da gagueira na identidade pode ser tanto positivo quanto negativo.

O desenvolvimento de uma identidade positiva como pessoa que gagueja depende de eventos interpretados como positivos. Ter uma rede de apoio e conseguir ter um propósito maior de vida são fatores que contribuem para uma identidade positiva como pessoa que gagueja. O desenvolvimento de uma identidade positiva também é potencializado pela religiosidade e pelos grupos de autoajuda.

O desenvolvimento de uma identidade negativa está relacionado à visão de que a vida seria melhor sem a gagueira. A autocrítica intensa e as reações desfavoráveis dos interlocutores são fatores que contribuem para uma identidade negativa como pessoa que gagueja. Para aqueles que possuem uma identidade negativa, a gagueira se torna algo difícil de aceitar e fortemente associada a rótulos depreciativos (como “humilhante” e “parecer idiota”).

4) A gagueira deflagra reações desfavoráveis

Os adultos com gagueira descreveram diversas reações dos interlocutores: choque, nervosismo, embaraço, impaciência e incompreensão. Este tipo de reação por parte do interlocutor faz com que o adulto com gagueira se sinta estigmatizado como menos inteligente ou com problemas psicológicos. Considerando essas reações, não é de surpreender que a evitação seja uma estratégia frequente para se lidar com a gagueira.

5) A gagueira interfere nos relacionamentos

O relacionamento com pais, irmãos, amigos, parceiros amorosos e profissionais de saúde pode ser impactado pela gagueira. Os pais podem se mostrar impacientes para ouvir a fala gaguejada, podem completar as frases dos filhos e podem ter pouco conhecimento sobre gagueira. Perceber que a gagueira também é dolorosa para os pais pode ter grande impacto nos filhos que gaguejam. Além disso, as tentativas para fazer novos amigos pode deflagrar sentimentos de medo e vergonha. Os relacionamentos amorosos tanto podem ser fonte de frustração, quanto de fortalecimento. Até interações com profissionais de saúde podem ser afetadas, com adultos que gaguejam evitando ir ao médico, por exemplo.

Tratamento abrangente da gagueira

Viver com gagueira persistente é uma experiência profunda, com impactos negativos em quase todos os aspectos. Muito do impacto negativo ocorre devido às reações negativas dos interlocutores e ao estigma de ser uma pessoa que gagueja. Após vivenciar situações com reações negativas dos interlocutores, os adultos com gagueira passam a antecipar essas reações. Assim, o uso frequente da evitação (de palavras, pessoas e situações) é uma tentativa de manejo. Por outro lado, a evitação também leva a outros resultados negativos, como a perda de amizades e de promoções no trabalho.

Evitar situações sociais não é algo restrito a pessoas com gagueira. Adultos com outros distúrbios graves de comunicação (como afasia, apraxia de fala e disartria) também lançam mão desta estratégia.

Os resultados deste estudo de revisão deixam claro porque a gagueira não é “só” um distúrbio de comunicação na vida adulta:

  • Ter uma identidade negativa e vivenciar situações sociais negativas por causa da gagueira tem o potencial de afetar a saúde mental.
  • Evitar interações com profissionais de saúde tem o potencial de afetar a saúde física.
  • Escolher outra profissão, não conseguir emprego e evitar ou não conseguir promoções afeta a saúde mental, a saúde física e o nível socioeconômico.

Dadas as amplas consequências da gagueira persistente, o tratamento oferecido ao adulto deve ser também amplo. Treinar técnicas de fala é apenas um dos pilares do tratamento. Também devem ser metas do tratamento: abordar os aspectos não-observáveis da gagueira (como a evitação), as reações emocionais ao ato de gaguejar, as reações negativas dos interlocutores e o manejo da discriminação no ambiente de trabalho, por exemplo. Embora o estudo de revisão em si tenha analisado apenas o relato de adultos com gagueira, a abordagem integral da gagueira pode e deve iniciar ainda durante a infância.

 

Referência

[1] Connery, A.; McCurtin, A.; & Robinson, K. (2020). The lived experience of stuttering: A synthesis of qualitative studies with implications for rehabilitation. Disability and Rehabilitation, 42(16), 2232-2242.