Foi recentemente publicado nosso estudo epidemiológico sobre alergias, asma e problemas de sono em adultos com gagueira [1]. Além de replicar os achados relativos às crianças com gagueira (veja aqui), este novo artigo também acrescenta novos dados em relação aos idosos com gagueira.
O estudo
Analisamos dados coletados no ano de 2012 do “National Health Interview Survey”, que é o censo americano de saúde. Todos os anos, cerca de 35.000 residências são visitadas. Um adulto e uma criança da residência são escolhidos aleatoriamente para responder a um longo questionário sobre saúde.
Para este estudo, analisamos as respostas de todos os adultos (aqueles com 18 anos ou mais). As perguntas sob análise foram:
- Nos últimos 12 meses, você teve problemas com gagueira?
- Nos últimos 12 meses, você teve algum tipo de alergia respiratória?
- Nos últimos 12 meses, um médico ou outro profissional de saúde disse que você tem rinite alérgica?
- Nos últimos 12 meses, você teve um episódio de asma ou um ataque de asma?
- Nos últimos 12 meses, você teve algum tipo de alergia alimentar?
- Nos últimos 12 meses, você teve eczema ou algum tipo de alergia de pele?
- Nos últimos 12 meses, você teve problemas com refluxo ou queimação?
- Nos últimos 12 meses, você regularmente teve insônia ou problemas para dormir?
- Nos últimos 12 meses, você regularmente teve sonolência excessiva durante o dia?
- Nos últimos 12 meses, você teve fadiga ou falta de energia mais de três dias?
- Em média, você tem quantas horas de sono em 24 horas?
Para as análises, controlamos variáveis demográficas (sexo, idade, índice de massa corporal, etnia, estado civil, região geográfica de moradia e emprego) e variáveis de saúde mental (fobias/medos, TDAH e depressão). Ou seja, as diferenças encontradas nos adultos com gagueira em relação aos pares sem gagueira não podem ser atribuídas a estas variáveis.
Na amostra de 33.363 adultos, 320 se identificaram como pessoas com gagueira (0,9%).
Os adultos com gagueira apresentaram cerca de duas vezes mais chances de referir alergia respiratória, asma, alergia alimentar, alergia de pele e refluxo gastroesofágico em relação aos pares sem gagueira. A única alergia que não apresentou maior ocorrência nos adultos com gagueira foi a rinite alérgica. A análise por faixas etárias indicou que a maior prevalência de alergias, asma e refluxo só ocorreu nos adultos de 18 a 59 anos. Os adultos com gagueira com 60 anos ou mais não apresentaram maior prevalência dessas condições em relação aos pares sem gagueira.
Os adultos com gagueira também apresentaram cerca de duas vezes mais chances de referir insônia ou problemas para dormir, dormir 10h por dia ou mais, sonolência excessiva diurna e fadiga diurna em relação aos sem gagueira. A análise por faixas etárias indicou que as consequências negativas diurnas da baixa qualidade do sono (sonolência excessiva e fadiga) ocorreu em todas as faixas etárias. Entretanto, a diferença em relação à insônia ou problemas para dormir ocorreu apenas na faixa etária de 18 a 59 anos. Por outro lado, a diferença em relação a dormir 10h por dia ou mais ocorreu apenas na faixa etária acima de 60 anos.
Além disso, 200 dos 320 adultos com gagueira referiram algum tipo de alergia, asma ou refluxo. Este subgrupo teve quase duas vezes mais chances de referir insônia ou problemas para dormir e fadiga diurna em relação ao subgrupo de adultos com gagueira que não referiu nenhuma destas condições. Ou seja, este achado está de acordo com dados prévios da literatura de que alergias, asma e refluxo estão associados a problemas para dormir (tanto de forma causal, quanto por efeito colateral das medicações utilizadas).
Por último, o subgrupo de 100 adultos com gagueira que não referiram alergias, asma ou refluxo teve quase duas vezes mais chances de referir insônia ou problemas para dormir e sonolência diurna em relação ao subgrupo de 20.635 adultos sem gagueira que também não referiram alergias, asma ou refluxo. Ou seja, os adultos com gagueira relataram mais insônia ou problemas para dormir mesmo na ausência dessas condições de saúde e com variáveis demográficas e de saúde mental levadas em consideração.
Adultos americanos de 18 a 59 anos
Os resultados do nosso estudo indicaram que apenas os adultos com gagueira que tinham entre 18 e 59 anos em 2012 referiram mais alergias e asma em comparação aos pares sem gagueira. Este subgrupo foi bastante afetado em seu desenvolvimento pela “epidemia de alergia” que ocorreu nos EUA ao longo do século XX: a) de 1932 a 1950, ocorreu a epidemia de rinite alérgica, b) de 1960 a 2000, ocorreu a epidemia de asma, c) de 1990 em diante, ocorreu a epidemia de alergia alimentar. Provavelmente isto explica por que apenas os adultos com gagueira desta faixa etária são mais afetados por alergias e asma. Em relação ao sono, este subgrupo referiu ser mais afetado por insônia (mas não por hipersonia).
Adultos americanos com 60 anos ou mais
Por outro lado, os resultados do nosso estudo indicaram que os adultos com gagueira que tinham 60 anos ou mais em 2012 (ou seja, aqueles nascidos em 1952 ou antes) não referiram mais alergias, asma, refluxo e insônia em comparação aos pares sem gagueira. Mas referiram mais hipersonia, ou seja, dormir 10h ou mais por dia. Este perfil diferenciado em relação a alergias, asma, refluxo e problemas de sono sugere que este subgrupo de pessoas com gagueira esteve submetido a variáveis ambientais diferentes durante seu desenvolvimento. Antes da epidemia de alergia, as doenças eram geralmente causadas por agentes infecciosos. De fato, existe uma hipótese de que a gagueira antigamente era geralmente causada por reação autoimune à infecção por estreptococos do grupo A [2]. Os dados do nosso estudo, por indicarem diferentes perfis de alergias/asma e sono em adultos com gagueira dependendo da faixa etária, fornecem evidências indiretas que dão apoio a esta hipótese.
Referências
[1] Merlo, S., & Briley, P. M. (2024). Allergies, asthma, and sleep problems in adults who stutter. Journal of Fluency Disorders, 81, 106063.
[2] Alm, P. A. (2020). Streptococcal infection as a major historical cause of stuttering: Data, mechanisms, and current importance. Frontiers in Human Neuroscience, 14.