Gagueira e fonologia (III)

mar 04, 2013 | por Sandra Merlo | Fonologia, Gagueira

A gagueira geralmente não é afetada por probabilidades fonotáticas ou pela vizinhança fonológica.

Neste post, o impacto da fonologia na gagueira é analisado em relação a outros subsistemas linguísticos (como o léxico) e em relação a outros sistemas cognitivos (como a memória operacional).

 

Gagueira e fonotaxe

A fonotaxe determina quais segmentos e quais sequências de segmentos são permitidos em uma língua. A probabilidade fonotática, por sua vez, indica qual é a probabilidade de ocorrência de determinados segmentos e de determinadas sequências de segmentos em uma língua. Alguns segmentos e algumas sequências são mais frequentes do que outros. Em princípio, segmentos mais frequentes são mais prontamente acessados, porque o caminho de acesso a esses segmentos é mais robusto, fazendo com que latências e erros de produção sejam mais incomuns.

A probabilidade fonotática influencia a produção falada em crianças pequenas (veja aqui). Por exemplo, a criança pode saber produzir uma determinada consoante, mas apenas em ambientes de alta probabilidade fonotática e não em ambientes de baixa probabilidade fonotática. Em inglês, /t/ é mais frequente como consoante de coda silábica do que /n/. Então, é mais provável que uma criança pequena produza a consoante de coda de “hat” do que de “man”, embora ela consiga produzir tanto /t/ quanto /n/ em posição de ataque silábico.

As fonoaudiólogas Julie Anderson & Courtney Byrd estudaram a ocorrência de gagueira de acordo com as probabilidades fonotáticas no inglês americano (veja aqui). A hipótese testada foi se a gagueira ocorre mais em palavras com probabilidades fonotáticas mais baixas, tendo em vista que palavras com menor probabilidade fonotática são mais suscetíveis a erros (como, por exemplo, substituição acidental por outra palavra semanticamente relacionada).

Participaram do estudo 19 crianças, de ambos os sexos, entre 3 e 5 anos de idade. Todas as crianças tinham diagnóstico de gagueira. As crianças brincaram com seus pais e o texto falado produzido pela criança foi analisado. Cada texto falado apresentou 825 palavras, em média. Ao todo, foram analisadas 684 palavras gaguejadas. Cada palavra gaguejada foi pareada com a próxima palavra fluente que satisfizesse os seguintes critérios: mesma classe gramatical (aberta ou fechada), mesmo número de sílabas, número aproximado de fonemas, frequência lexical aproximada, densidade e frequência da vizinhança fonológica aproximadas.

As probabilidades fonotáticas das palavras foram analisadas em relação a dois aspectos:

  1. Frequência do segmento de acordo com a posição, ou seja, qual a probabilidade de um segmento ocorrer em diferentes posições dentro da palavra.
  2. Frequência bifônica, ou seja, qual a probabilidade de dois segmentos ocorrerem sequencialmente dentro de uma palavra.

Os resultados indicaram não haver diferenças significativas entre palavras gaguejadas e fluentes em relação à frequência do segmento. Entretanto, quanto a tipologia da gagueira foi analisada separadamente, encontrou-se que as repetições de palavras monossilábicas apresentaram frequência de segmento significativamente menor em comparação às palavras fluentes, às com repetições de sílabas e às com alongamentos fônicos.

Os resultados também indicaram não haver diferenças significativas entre palavras gaguejadas e fluentes em relação à frequência bifônica. Entretanto, quanto a tipologia da gagueira foi analisada separadamente, encontrou-se que as repetições de palavras monossilábicas apresentaram frequência bifônica significativamente menor em comparação às palavras fluentes.

Portanto, o estudo indicou que as hesitações gaguejadas como um todo não são sensíveis às probabilidades fonotáticas, somente as repetições de palavras monossilábicas. A frequência e as sequências dos segmentos foram significativamente menores nas repetições de palavras monossilábicas em comparação às repetições de parte de palavras, alongamentos fônicos e palavras fluentes. Desta forma, as repetições de palavras monossilábicas se mostraram mais sensíveis ao processamento fonológico do que as outras hesitações gaguejadas.

A Hipótese do Reparo Encoberto prevê que a gagueira seja mais frequente em segmentos com menor probabilidade fonotática, tendo em vista que esses segmentos são mais suscetíveis a erros. Assim, a previsão da Hipótese foi apenas parcialmente confirmada.

 

Gagueira e vizinhança fonológica

A vizinhança fonológica se refere às palavras que diferem de uma palavra-alvo em relação a um único fonema (seja em termos de apagamento, adição ou substituição). Por exemplo, a palavra “pata” possui muitos vizinhos fonológicos:

  • Apagamento: “ata”.
  • Adição: “parta”, “pauta”, “patas”.
  • Substituição: “bata”, “mata”, “data”, “nata”, “lata”, “cata”, “gata”, “rata”, “papa”, “paca”, “paga”, “para”, “palha”, “penta”, “pinta”, “ponta”, “pato”.

Por outro lado, a palavra “fonologia” tem pouquíssimos vizinhos fonológicos. Só consegui pensar em “fonologias” (adição).

Assim, há vizinhanças mais densas (como a de “pata”) e outras mais esparsas (como a de “fonologia”). Quanto maior o número de vizinhos fonológicos, maior é a densidade fonológica da palavra. Palavras com menor extensão costumam ter vizinhanças fonológicas mais densas em comparação a palavras com maior extensão.

Há evidências de que as palavras sejam organizadas em vizinhanças fonológicas no léxico mental. Palavras com alta densidade fonológica tendem a ser produzidas com menor tempo de latência e com menos probabilidade de erro em comparação a palavras com baixa densidade fonológica. A explicação mais aceita para este fenômeno sugere que a produção lexical é o resultado da ativação difusa de características semânticas (lema) e fonológicas (lexema). O processamento em rede primeiro ativaria a camada referente ao lema e, em seguida, ao lexema da palavra-alvo. Na sequência, os vizinhos fonológicos da palavra-alvo receberiam ativação residual, a qual, por sua vez, retroalimentaria ainda mais o lexema da palavra-alvo. Assim, palavras com alta densidade fonológica seriam mais retroalimentadas neste processo do que palavras com baixa densidade fonológica.

Os vizinhos fonológicos também podem ser analisados em termos de frequência de ocorrência. Uma palavra é tida como de alta ou de baixa frequência de acordo com o número de vezes que ocorre na língua em uma base de um milhão de ocorrências. Palavras de alta frequência ocorrem pelo menos 100 vezes a cada milhão de palavras. Palavras de baixa frequência ocorrem menos de 100 vezes a cada milhão de palavras.

A fonoaudióloga Julie Anderson investigou se a densidade e a frequência da vizinhança fonológica influenciam a ocorrência de gagueira (veja aqui). Participaram do estudo 15 crianças, entre 3 e 5 anos. Todas as crianças tinham diagnóstico de gagueira, sendo que o tempo desde o início da gagueira variou entre 3 e 33 meses. As crianças brincaram com seus pais durante 30 minutos. O texto falado produzido por cada criança foi analisado (média de 850 palavras por texto).

Ao todo, foram analisadas 644 palavras gaguejadas. Cada palavra gaguejada foi pareada com a próxima palavra falada fluentemente que fosse da mesma classe gramatical (aberta ou fechada) e que contivesse o mesmo número de sílabas. Das 644 palavras gaguejadas, 184 (29%) eram de classe aberta e 460 (71%) de classe fechada; 610 (95%) eram monossilábicas e 31 (5%) eram dissilábicas.

Em relação à densidade fonológica, os resultados do estudo indicaram que as palavras gaguejadas apresentaram a mesma densidade fonológica das palavras fluentes. As palavras gaguejadas apresentaram 18 vizinhos fonológicos, enquanto as palavras fluentes apresentaram 17 vizinhos, em média. A alta taxa de vizinhos fonológicos se deve à quase exclusiva produção de monossílabos na fala das crianças.

Em relação à frequência lexical dos vizinhos fonológicos, as palavras gaguejadas apresentaram vizinhos de menor frequência em comparação com as palavras fluentes. As palavras gaguejadas apresentaram frequência média de 825 ocorrências por milhão, enquanto as palavras fluentes apresentaram frequência média de 1386 ocorrências por milhão. A frequência dos itens lexicais também se deve às características da fala infantil, cujo vocabulário apresenta muito mais palavras de alta do que de baixa frequência. Esta diferença na frequência lexical dos vizinhos fonológicos ocorreu apenas para as repetições de parte de palavra, mas não para as repetições de palavras monossilábicas ou para os alongamentos fônicos.

A Hipótese do Reparo Encoberto prevê que a gagueira é mais frequente em palavras com menor densidade fonológica e com vizinhos fonológicos de menor frequência. Quanto mais uma palavra é ativada (seja por ativação direta ou por retroalimentação), mais ela é fortalecida e, portanto, maior deve ser sua velocidade de codificação fonológica e menor a probabilidade de erros. Este estudo, portanto, confirmou apenas parcialmente as premissas da Hipótese do Reparo Encoberto.

 

Gagueira e monitoramento fonológico

A fonoaudióloga Jayanthi Sasisekaran e colaboradores estudaram o monitoramento fonológico na fala interna de adultos (veja aqui). Participaram do estudo 22 adultos, todos do sexo masculino, metade com e metade sem gagueira. Os estímulos consistiram em 14 figuras de objetos cujos nomes eram dissílabos paroxítonos com o padrão /’CVCCVC/. Uma das tarefas solicitadas era dizer se determinado fonema estava ou não presente no nome daquela figura, sem que o nome fosse falado em voz alta. Os sujeitos, então, só poderiam contar com a fala interna para realizar a tarefa. Os fonemas que deveriam ser monitorados poderiam estar em uma das quatro posições a seguir: /’C¹ VC² C³ VC4/.

Os resultados indicaram que os adultos com gagueira precisaram de mais tempo para acusar a presença de um fonema em uma palavra em comparação com adultos sem gagueira (1180 versus 940 ms, respectivamente, em média).

Para os dois grupos, o monitoramento de um fonema inicial sempre foi feito mais rapidamente em relação aos demais fonemas da palavra (P1 ≠ P2, P3, P4). No caso dos adultos com gagueira, o monitoramento do fonema inicial foi feito em 900 ms e dos outros fonemas, em 1200 ms, em média. No caso do grupo sem gagueira, o monitoramento do fonema inicial foi feito em 800 ms e dos outros fonemas, em 1000 ms, em média. A diferença entre os grupos é significativa.

Para excluir a possibilidade de que a necessidade de maior tempo de reação dos sujeitos com gagueira fosse devido puramente ao processamento auditivo e não ao processamento fonológico, os pesquisadores também solicitaram que os sujeitos monitorassem a presença de um determinado tom puro (1 kHz) em meio a outros três tons puros (todos de 500 Hz). Neste caso, não houve diferença significativa no tempo de reação entre os grupos com e sem gagueira (685 versus 650 ms, respectivamente, em média).

Também houve diferença com relação à posição do tom puro, sendo que quando o alvo estava na primeira posição era identificado mais rapidamente do que o da segunda posição, este era identificado mais rapidamente do que o da terceira posição e este mais rapidamente do que o da quarta posição (P1 ≠ P2 ≠ P3 ≠ P4). Não houve diferença significativa no tempo de reação entre os grupos com e sem gagueira.

A quantidade de erros foi estatisticamente equivalente entre os grupos tanto para a tarefa de monitoramento de fonema, quanto para a de monitoramento de tom puro.

Para excluir a possibilidade de que a necessidade de maior tempo de reação dos sujeitos com gagueira fosse devido puramente à resposta motora e não ao processamento fonológico, os pesquisadores também solicitaram que os sujeitos realizassem uma tarefa motora: clicar no botão esquerdo do mouse assim que ouvissem um tom puro de 500 Hz, o qual era precedido por um intervalo aleatório de 500, 1000, 1500 ou 2000 ms. Nas tarefas anteriores de monitoramento fonológico e auditivo, as respostas também eram dadas com o mouse (botão esquerdo para “sim” e botão direito para “não). Não houve diferença significativa entre os grupos com e sem gagueira (280 e 260 ms, respectivamente, em média).

Os resultados do estudo sugeriram, portanto, que o monitoramento fonológico de adultos com gagueira é mais lentificado em relação a adultos com gagueira, fornecendo evidências para a Hipótese do Reparo Encoberto.

 

Gagueira e memória fonológica

O modelo mais influente de memória operacional é o do psicólogo Alan Baddeley (veja aqui). A memória operacional é um sistema temporário de armazenamento e processamento de informações, podendo ser dividida em quatro componentes: executivo central, alça fonológica, alça episódica e alça visuoespacial. De especial interesse para esta discussão são o executivo central e a alça fonológica.

O executivo central é um sistema atencional, relacionado com o processamento de informações e responsável pela capacidade da memória operacional (span).

A alça fonológica não é capaz de processamento, apenas de armazenamento fonológico. O material permanece na alça por alguns segundos antes de decair. Para retê-lo por mais tempo, é necessário utilizar a estratégia de repetição subvocal.

A repetição de palavras que não existem (chamadas pseudopalavras, não palavras ou logatomas) é considerada tipicamente uma tarefa da alça fonológica da memória operacional. Para realizar a tarefa com sucesso, é necessário discriminar sequencialmente todos os fonemas, mantê-los armazenados na alça fonológica e, por fim, realizar a produção falada. É claro que a repetição de pseudopalavras não é uma tarefa puramente de memória fonológica, porque envolve discriminação auditiva e resposta motora, mas avalia a capacidade da memória fonológica com relativa confiabilidade.

A fonoaudióloga Julie Anderson e colaboradoras estudaram a alça fonológica da memória operacional na gagueira (veja aqui). Participaram do estudo 24 crianças, entre 3 e 5 anos, metade com e metade sem gagueira. As crianças foram avaliadas através de testes específicos de vocabulário receptivo e expressivo, linguagem receptiva e expressiva e fonologia expressiva.

Na tarefa de memória fonológica, as crianças repetiram 40 pseudopalavras de duas a cinco sílabas (10 palavras de cada extensão). Por exemplo:

  • 2 sílabas: “diller”
  • 3 sílabas: “skiticult”
  • 4 sílabas: “empliforvent”
  • 5 sílabas: “sepretennial”

Os resultados do estudo indicaram diferenças significativas entre os grupos na repetição correta das pseudopalavras de duas e três sílabas, sendo que as crianças com gagueira apresentaram desempenho pior em relação às sem gagueira. Para as pseudopalavras dissilábicas, crianças com e sem gagueira repetiram corretamente 5 e 7 itens, respectivamente. Para as pseudopalavras trissilábicas, crianças com e sem gagueira repetiram corretamente 4 e 6 itens, respectivamente. O desempenho dos dois grupos para pseudopalavras de 4 e 5 sílabas foi igualmente ruim (3 e 2 itens, respectivamente).

Quando os erros fonológicos na repetição das pseudopalavras foram comparados entre os grupos, as crianças com gagueira apresentaram o dobro de erros em comparação a crianças sem gagueira para palavras trissilábicas (20 e 10 erros, respectivamente); não houve diferença entre os grupos para os erros relativos às pseudopalavras de 2, 4 e 5 sílabas. Para os dois grupos, os erros fonológicos aumentaram conforme a extensão das pseudopalavras aumentou.

A pontuação total das crianças com gagueira na tarefa de repetição de pseudopalavras apresentou correlação positiva com o teste de fonologia expressiva. Esta é uma evidência de que o desempenho em tarefas de memória fonológica é um indicador de um processamento fonológico mais geral.

O grau de gagueira não se modificou em função da extensão das pseudopalavras. As crianças com gagueira falaram fluentemente 8-9 palavras para cada bloco de 10 palavras.

O fato de as crianças com gagueira terem errado mais na repetição das pseudopalavras pode ser uma evidência a favor da Hipótese do Reparo Encoberto. Entretanto, a Hipótese prevê correlação inversa entre erros fonológicos explícitos e gagueira. Mas isso não aconteceu no estudo, porque a gagueira não diminuiu conforme aumentaram os erros fonológicos na repetição das pseudopalavras.
Levando em conta que a capacidade da memória fonológica aumenta com a idade, adultos com gagueira também teriam menor capacidade de memória fonológica em relação a adultos sem gagueira? A fonoaudióloga Courtney Byrd e colaboradores estudaram esta questão (veja aqui).

Participaram do estudo 28 adultos, de ambos os sexos, metade com e metade sem gagueira. Os participantes com gagueira apresentaram graus variados do problema: desde leve até grave. Foram utilizadas 48 pseudopalavras de 2, 3, 4 e 7 sílabas de extensão. A probabilidade fonotática das pseudopalavras foi controlada para que fosse baixa, a fim de dificultar o desempenho nas tarefas experimentais. Os participantes foram solicitados a repetir as pseudopalavras em voz alta e também a realizar o apagamento de um dos fonemas. Por exemplo:

Extensão

Tarefa de repetição de pseudopalavra

Tarefa de apagamento de fonema de pseudopalavra

2 sílabas

“Say KEN.TAID”.

“Say KEN.TAID without saying /k/”.

3 sílabas

“Say SIK.AN.THOD”.

“Say SIK.AN.THOD without saying “th””.

4 sílabas

“Say AN.TIS.KOL.DATE”.

“Say AN.TIS.KOL.DATE without saying /k/”.

7 sílabas

“Say DAY.BISH.OCK.SIN.ALL.O.BIT”.

“Say DAY.BISH.OCK.SIN.ALL.O.BIT without saying “sh””.

 

Os resultados indicaram que o desempenho dos adultos com gagueira foi significativamente pior em relação aos sem gagueira somente na repetição das pseudopalavras de 7 sílabas. A maior dificuldade dos adultos com gagueira para repetir pseudopalavras longas sugeriu um déficit sutil no armazenamento e/ou na manutenção da sequência de segmentos na alça fonológica da memória operacional.

Por outro lado, não houve diferença significativa entre os grupos na tarefa de apagamento de fonema. Esta tarefa foi executada em conjunto com o executivo central, componente responsável pela alocação de recursos na memória operacional, tendo em vista que a alça fonológica só realiza armazenamento e não processamento. Neste sentido, os resultados sugeriram integridade na operação de manipulação fonológica de adultos com gagueira em relação a adultos sem gagueira.

 

Hipótese do Reparo Encoberto: evidências a favor e contra

Após discutirmos diversos estudos sobre gagueira e fonologia, retornamos agora à Hipótese do Reparo Encoberto. Um fonoaudiólogo inglês, Paul Brocklehurst, publicou um artigo de revisão sobre as evidências a favor e contra a Hipótese. A Hipótese foi anunciada pela primeira vez em 1993 (veja aqui) e foram feitos diversas pesquisas desde então para testá-la.

 

Rapidez de codificação fonológica

A maioria dos estudos realizados reportou que crianças com gagueira apresentam os mesmos processos fonológicos das sem gagueira. A única exceção parece ser a aquisição tardia de formas fonológicas mais complexas, como a estrutura silábica CCV (cf. o quarto texto desta série).

Os estudos de julgamento de rima fonológica não apontaram diferenças significativas entre adultos com e sem gagueira. Quando solicitados a categorizar palavras em relação à presença ou ausência de rima entre elas, adultos com gagueira foram tão rápidos quanto adultos sem gagueira. Diferenças apareceram apenas quando a carga de processamento foi aumentada (por exemplo, quando duas palavras apresentaram ortografia similar, mas não rimaram ou quando foram solicitados processamentos fonológicos simultâneos; veja aqui). Nestes casos específicos, a velocidade de processamento fonológico de pessoas com gagueira foi significativamente mais lenta em comparação aos pares sem gagueira.

Estudos que avaliaram monitoramento de fonemas geralmente revelaram que adultos com gagueira precisam de mais tempo para julgar se um determinado fonema está ou não presente em uma palavra (veja aqui). Esta, portanto, é uma evidência para a lentidão de codificação fonológica na gagueira.

No geral, os resultados das pesquisas mostraram que crianças e adultos com gagueira podem apresentar processos de codificação fonológica lentificados em relação aos pares sem gagueira, mas apenas para situações muito específicas (como monitoramento de fonemas e realização de duas tarefas fonológicas simultâneas). É possível que este seja um fator que contribua para a cronificação da gagueira, mas, isoladamente, não parece ser o fator causal, conforme previsto pela Hipótese do Reparo Encoberto.

 

Reparo de erros

A Hipótese do Reparo Encoberto prevê que situações que diminuem o grau de monitoramento, aumentam o número de erros fonológicos e diminuem a gagueira.

Situações de fala com grande pressão de tempo (por exemplo, uma discussão) tendem a reduzir o grau de monitoramento. A necessidade de falar com rapidez reduz o grau de monitoramento da fala interna. Estudos mostraram que situações de fala com pressão de tempo geraram significativamente mais repetições de palavras monossilábicas e repetições de parte de palavras (e não menos, como previsto pela Hipótese). Uma explicação alternativa é que, nessas situações, o falante se vê forçado a continuar sua fala, mesmo sem ter feito o plano fonético da próxima palavra. Isso faz com que as repetições sejam necessárias para manter o turno comunicativo (veja aqui e aqui).

A Hipótese do Reparo Encoberto também prevê que situações de dupla tarefa diminuam a gagueira. Nestas situações, como a atenção está dividida entre duas tarefas, o monitoramento da fala interna é menor, o que produziria mais erros fonológicos e menos gagueira. Há estudos que reportaram os resultados previstos pela teoria (aqui). Há estudos que reportaram redução de bloqueios e aumento de repetições de parte de palavras em situações de dupla tarefa. E também há estudos que reportaram resultados opostos aos previstos pela teoria (aqui), ou seja, a gagueira aumentou em situações de dupla tarefa.

No geral, não há evidências suficientes que demonstrem que a redução do monitoramento da fala interna, aumente os erros fonológicos na fala e reduza o número de hesitações gaguejadas.

 

Monitoramento da fala interna e monitoramento auditivo

A Hipótese do Reparo Encoberto postula que o grau de monitoramento e reparo de erros está diretamente ligado ao número de hesitações gaguejadas. Um estudo encontrou exatamente este resultado: quando adultos com gagueira foram solicitados a prestar mais atenção às suas falas e a produzir fala sem erros, a quantidade de erros de fato diminuiu, mas a quantidade de gagueira aumentou.

A Hipótese do Reparo Encoberto também prevê que o monitoramento (tanto da fala interna, quanto auditivo) de pessoas com gagueira funciona normalmente. Ou seja, pessoas com gagueira identificam com precisão erros de codificação fonológica no plano fonético.

Diversos estudos solicitaram para que pessoas com e sem gagueira identificassem erros fonológicos na fala de outras pessoas (monitoramento auditivo, portanto). Alguns estudos encontraram que as pessoas com gagueira identificaram menos erros em relação aos pares, enquanto outros estudos reportaram o oposto. Ou seja, os estudos não demonstraram que o monitoramento das pessoas com gagueira é, de fato, normal: ou os dados apontam para desatenção ou para hipervigilância de erros.

No geral, os estudos indicaram monitoramento normal da fala interna, mas dificuldades de monitoramento auditivo.

 

Monitoramento da pauta gestual

Os autores da Hipótese do Reparo Encoberto basearam-se em pesquisas para afirmar que o falante monitora a fala interna (ou seja, o plano fonético), mas não a pauta gestual (ou seja, a programação motora). Entretanto, estudos mais recentes demonstraram que é possível o monitoramento da pauta gestual e a consequente detecção de erros nesta pauta. Assim, é possível que as pessoas com gagueira detectem erros na pauta gestual e corrijam erros pré-articulatórios ao invés de detectar erros no plano fonético e corrigir erros fonológicos.

De forma geral, Paul Brocklehurst conclui que os resultados acumulados não dão suporte a todas as premissas da Hipótese do Reparo Encoberto. A premissa central foi refutada: não há lentidão geral do processamento fonológico em pessoas com gagueira. Determinadas tarefas podem ser processadas mais lentamente por pessoas com gagueira, mas não é possível dizer que isso seja uma constante. Além disso, a redução no grau de monitoramento do plano fonético não necessariamente leva ao aumento de erros fonológicos na fala e à consequente redução da gagueira (premissas secundárias da Hipótese).

 

O mérito da Hipótese do Reparo Encoberto está no fato de ter oferecido uma hipótese clara e testável sobre a gagueira. Pesquisadores do mundo todo reconheceram a cientificidade da Hipótese e a testaram. Embora os resultados finais não tenham confirmado a Hipótese do Reparo Encoberto em sua maior parte, certamente muito foi aprendido sobre o processamento fonológico e o monitoramento de pessoas com gagueira.